Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou entendimentos sobre o direito de pacientes Testemunhas de Jeová de recusar transfusões de sangue e a obrigatoriedade do Estado em financiar tratamentos médicos alternativos que respeitem crenças religiosas. As decisões, relativas aos Temas 1069[RC1] e 952[RC2] , reforçam o equilíbrio entre o direito à saúde e à liberdade religiosa, reafirmando a autonomia dos pacientes em suas escolhas médicas.
Temas 1069 e 952: Contexto das Decisões
O Tema 1069 e o Tema 952 tratam de casos distintos, porém conectados pela mesma questão de respeito à liberdade religiosa e autonomia do paciente:
- Tema 1069: O primeiro caso envolveu uma paciente Testemunha de Jeová que precisava realizar uma cirurgia cardíaca. Como sua crença religiosa proíbe a transfusão de sangue, ela solicitou ao hospital que o procedimento fosse realizado sem essa condição. No entanto, o hospital exigia que ela assinasse um termo autorizando a transfusão em caso de necessidade emergencial, o que foi recusado. Após decisão desfavorável de tribunais inferiores, o caso chegou ao STF. A Corte decidiu que é permitido ao paciente adulto e capaz, em pleno gozo de sua capacidade civil, recusar a transfusão de sangue por motivo religioso, desde que a decisão seja livre, consciente e informada, podendo ser registrada em diretivas antecipadas de vontade.
- Tema 952: No segundo caso, o paciente, também Testemunha de Jeová, necessitava de uma cirurgia que, em sua cidade, Manaus, só era realizada com transfusão de sangue. Em razão de sua crença, ele solicitou que o tratamento fosse realizado em São Paulo, onde havia um hospital público que realizava o procedimento sem transfusão. O pedido foi atendido na Justiça, que condenou a União, o Estado do Amazonas e o Município de Manaus a arcar com os custos de deslocamento e hospedagem do paciente e um acompanhante. No julgamento, o STF entendeu que o poder público deve oferecer alternativas ao paciente, respeitando suas convicções religiosas, e, quando necessário, financiar o deslocamento para um local onde o tratamento compatível esteja disponível.
Esses casos ilustram o reconhecimento da autonomia e da liberdade religiosa como direitos fundamentais, obrigando o Estado e instituições de saúde a considerarem a fé e a vontade do paciente na tomada de decisões médicas.
Principais Pontos das Decisões do STF
- Direito à Liberdade Religiosa e à Autonomia do Paciente
Em ambos os temas, o STF destacou que a liberdade religiosa permite ao paciente recusar tratamentos que contrariam suas crenças, desde que a decisão seja:
- Paciente maior em pleno gozo da sua capacidade civil
- Livre e Informada: O paciente deve tomar a decisão voluntariamente, com pleno conhecimento dos riscos.
- Antecipada e Documentada: A recusa pode ser formalizada em diretivas antecipadas de vontade.
- Tratamentos Alternativos e o Papel do Estado
O STF determinou que o poder público deve oferecer alternativas terapêuticas aos pacientes Testemunhas de Jeová, conforme as disponibilidades técnicas e científicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Caso o tratamento alternativo não esteja disponível no município de residência, o Estado é responsável pelo custeio do deslocamento.
- Exceções para Pacientes Menores de Idade
No caso de crianças e adolescentes, a liberdade religiosa dos pais não pode impedir tratamentos essenciais para preservar a saúde e a vida dos menores. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente prevalece, e, quando possível, deve-se optar por alternativas que respeitem as crenças familiares.
- Normas e Referências da OMS e do Ministério da Saúde
A decisão também leva em conta a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, que reconhecem a segurança de alguns procedimentos alternativos à transfusão, já praticados em diversos centros do SUS. Esses procedimentos, sempre que tecnicamente viáveis, devem estar disponíveis para atender a demanda dos pacientes Testemunhas de Jeová.
Implicações das Decisões para Profissionais da Saúde e Instituições
As decisões do STF reforçam a importância de que médicos e hospitais respeitem as convicções religiosas dos pacientes, mantendo o compromisso de fornecer informações completas e apoio às alternativas seguras disponíveis. A autonomia e a dignidade do paciente estão no centro desse entendimento, promovendo um ambiente onde liberdade religiosa e direito à saúde possam coexistir.
Conclusão
O julgamento conjunto dos Temas 1069 e 952 pelo STF estabelece um marco para a saúde pública brasileira, equilibrando o direito à liberdade religiosa e a autonomia individual com a responsabilidade do Estado em prover saúde de forma inclusiva e respeitosa. Com isso, o STF reafirma que a dignidade do paciente está acima de imposições médicas e burocráticas, desde que a escolha seja consciente e informada.
Referências: STF, RE 1.212.272 (Tema 1069) e RE 979.742 (Tema 952), decisão de 25 de setembro de 2024
Dra Raquel Cardoso
Sócia Fundadora do Escritório R&S Cardoso Advogados